Entrevista com Bill Gates: o otimista
Ao refletir sobre o encerramento da sua fundação, Gates faz seus maiores planos até o momento
Em maio, Bill Gates impôs a si mesmo um novo e ousado desafio e um prazo difícil: doar praticamente toda a sua riqueza nos próximos 20 anos e encerrar seu empreendimento filantrópico de longa data. A Fundação Gates, um dos parceiros do Rotary na Iniciativa Global de Erradicação da Pólio, já doou mais de US$100 bilhões em seus primeiros 25 anos. No entanto, para que a fundação possa encerrar suas atividades totalmente, ela precisa primeiro aumentar o ritmo, a fim de gastar mais do que o dobro desse valor antes de fechar suas portas em 31 de dezembro de 2045.
A pólio continua sendo uma prioridade. Na Convenção do Rotary International de 2025 em Calgary, Canadá, o Rotary e a Fundação Gates anunciaram um compromisso conjunto de direcionar até US$ 450 milhões, nos próximos três anos, para a erradicação da pólio, renovando sua parceria. O Rotary continuará arrecadando US$ 50 milhões por ano, e cada dólar receberá a equiparação de 2:1 da Fundação Gates.

Em junho, Bill Gates dedicou um prêmio que recebeu do presidente nigeriano a Ayuba Gufwan. Acometido pela paralisia infantil aos 5 anos de idade, Gufwan atua como secretário-executivo da Comissão Nacional para Pessoas com Deficiência da Nigéria e CEO da Wheelchairs for Nigeria.
Foto cedida pela Fundação Gates
Para saber mais sobre sua decisão, como ele vê o legado da sua fundação e o que está por vir, a revista fez algumas perguntas a Gates, que completa 70 anos neste mês. Estas são as respostas que ele enviou na íntegra.
Ao celebrar o 25º aniversário da Fundação Gates, do que você mais se orgulha?
Nos últimos 25 anos, testemunhamos e contribuímos para um progresso maior do que jamais imaginamos ser possível.
Tenho orgulho das parcerias que contribuíram para salvar vidas – não apenas a Iniciativa Global de Erradicação da Pólio, mas também o Fundo Global de Combate à Aids, Tuberculose e Malária e a Aliança Gavi. Graças a esses programas, o preço das inovações na área da saúde que salvam vidas – vacinas, tratamentos, mosquiteiros e diagnósticos – caiu drasticamente.
O impacto é impressionante: até o momento, essas colaborações viabilizaram a vacinação de 1,1 bilhão de crianças, ajudaram a reduzir a mortalidade infantil global pela metade e salvaram mais de 80 milhões de vidas. Centenas de milhões de pessoas saíram da pobreza e passaram a ter uma vida melhor.
Durante o processo de encerramento da sua fundação nos próximos 20 anos, onde você acha que seu dinheiro causará o maior impacto? Que obstáculos prevê?
Apesar de todo o progresso que acabei de descrever, estamos enfrentando os ventos contrários mais difíceis da história da nossa fundação. Os países estão cortando dezenas de bilhões de dólares em financiamento para o desenvolvimento global, e as consequências serão mortais. Na verdade, este será o primeiro ano do novo milênio em que o número de crianças que morrem em todo o mundo aumentará em vez de diminuir – uma tragédia inimaginável.

Ilustração de Uli Knörzer
Precisamos que pessoas comprometidas com o progresso – como os rotarianos – posicionem-se contra esses cortes e nos ajudem a retomar o caminho do progresso.
Quanto a nós, iremos acelerar nosso trabalho nos próximos 20 anos para resolver problemas urgentes e salvar e melhorar mais vidas. Continuamos firmemente focados nas áreas em que podemos causar o maior impacto: 1) redução da mortalidade infantil, 2) erradicação ou eliminação de doenças infecciosas e 3) retirada de milhões de pessoas da pobreza e sua posterior colocação em um caminho de prosperidade.
Estamos apostando na engenhosidade humana – nos cientistas, profissionais da saúde, educadores e agricultores cujo trabalho incansável já proporcionou alguns dos ganhos mais significativos da história da humanidade. Eles não desistiram, e nós também não desistiremos.
Como você garante a sustentabilidade?
Nosso objetivo na Fundação Gates sempre foi resolver problemas, não gerenciá-los perpetuamente. Isso significa ajudar as comunidades a desenvolver a capacidade de enfrentar os desafios encontrados. Essa será a nossa prioridade nos próximos 20 anos, e esperamos que seja a prioridade da próxima geração de filantropos que assumirão os desafios de seu tempo.
Mais inovações continuarão dando a essas comunidades ferramentas melhores do que nunca para investir em sua própria saúde e prosperidade. Portanto, apesar dos desafios que enfrentamos, estou otimista. Os últimos 25 anos foram um dos maiores períodos de progresso humano da história, e acredito que os próximos 20 podem ser ainda mais transformadores.
Os casos do vírus selvagem da pólio aumentaram em 2024. O que faz você acreditar que a erradicação ainda é possível?
Estou mais confiante do que nunca de que o programa global da pólio acabará de vez com a doença.
O que me mantém otimista, apesar de alguns desafios, é a inovação, os trabalhadores da linha de frente e o compromisso global que impulsionam esse esforço. A vacina de última geração contra a poliomielite, a nOPV2, está ajudando a interromper os surtos, protegendo da paralisia crianças de comunidades subimunizadas. Mais de 1,6 bilhão de doses foram administradas até julho de 2025, o que representa um número incrível de crianças protegidas contra essa doença devastadora. E temos um estoque suficiente para proteger as crianças onde quer que ela surja.

Nos países onde a poliomielite selvagem continua endêmica, Afeganistão e Paquistão, o programa está operando em estreita colaboração com as autoridades locais para enfrentar os obstáculos, melhorando a coordenação entre fronteiras e fortalecendo a confiança da comunidade para que todas as crianças recebam as vacinas.
Apesar do recente aumento de casos, não devemos perder de vista o progresso mais amplo, que é realmente notável: a Iniciativa Global de Erradicação da Pólio eliminou o vírus selvagem em quase todos os países do mundo, reduzindo o número de casos de pólio em mais de 99%. Com comprometimento e colaboração contínuos, inclusive de rotarianos de todo o mundo, tenho certeza de que conseguiremos terminar o trabalho.
Como o programa da pólio está se adaptando à atual volatilidade política e econômica? Houve alguma mudança na forma como a sua fundação está trabalhando para acabar com a doença?
O programa da pólio tem um longo histórico de adaptação para acabar com a doença em alguns dos ambientes mais complexos do mundo, atuando em estreita colaboração com governos e comunidades para proteger o progresso da imunização de rotina e manter o foco na erradicação.
Vamos usar o Paquistão como exemplo. Às vezes, as forças de segurança fornecem apoio em áreas de conflito para que os vacinadores possam fazer seu trabalho sem riscos. Porém, em áreas da província de Khyber Pakhtunkhwa, onde os conflitos têm aumentado, a presença dessas forças estava, na verdade, impedindo que as famílias se sentissem seguras o suficiente para ir ao local das vacinações. Assim, influenciadores locais entraram em ação para manter os vacinadores seguros sem precisar envolver as forças de segurança. A abordagem tem funcionado bem, e 80% das crianças estão sendo alcançadas. Será fundamental que o programa monitore essas áreas de forma independente para que possamos ter confiança nos resultados.
Hoje, em meio a prioridades de saúde concorrentes e pressões políticas e financeiras crescentes, sabemos que temos desafios difíceis pela frente. Alguns dos principais doadores estão reduzindo o apoio à saúde global, mas novos doadores também estão fazendo contribuições, o que é muito importante neste momento. E continuamos nos adaptando como sempre, mantendo o foco no que funciona e usando recursos financeiros e humanos onde eles tenham o maior impacto para acabar de vez com a pólio.
Qual a maior lição que você aprendeu durante o tempo em que vem trabalhando com a erradicação da pólio?
O progresso depende de uma colaboração incansável. O sucesso só é possível quando agentes de saúde, funcionários do governo, parceiros e doadores – inclusive o Rotary – trabalham juntos para levar as vacinas às crianças, mesmo nas áreas de mais difícil acesso do mundo.
Observamos o poder desse tipo de colaboração recentemente em Madagascar, durante um surto da variante do poliovírus. O governo entrou em cena com uma forte liderança política para deter a disseminação; parceiros comunitários trabalharam rapidamente para fortalecer as campanhas de vacinação; e parceiros internacionais, como o Unicef e a Organização Mundial da Saúde, aumentaram o apoio para impulsionar esses esforços. Todos trabalharam para proteger as crianças com vacinas em algumas das regiões mais distantes e isoladas do país, e conseguiram interromper o surto.
Para acabar de vez com a pólio, precisamos de mais colaborações como essa, sempre e onde quer que a doença continue a surgir. O papel dos associados do Rotary como defensores da causa e líderes cívicos é fundamental para garantir que a erradicação da pólio continue sendo uma prioridade global.

Esta foto de setembro de 2000 mostra Gates dando a vacina contra a poliomielite a uma criança na Índia, uma ilustração de seu compromisso de longa data com o fim da doença.
Foto: Getty images
A Fundação Gates tem financiado inovações técnicas nas vacinas contra a pólio há duas décadas, incluindo o desenvolvimento e a implementação da nOPV2. O que mais o entusiasma em relação ao que está em processo de pesquisa e desenvolvimento atualmente?
O investimento constante em inovação é mais crítico do que nunca. Como mencionei, a nOPV2 já está ajudando a eliminar surtos e continuamos investindo em vacinas geneticamente mais estáveis para manter as gerações futuras a salvo das variantes do poliovírus. Esses avanços estão nos ajudando a interromper a transmissão mais rapidamente e a proteger mais crianças com maior precisão.
Também estamos entusiasmados com a vacina hexavalente, que protege as crianças contra seis doenças: difteria, coqueluche, tétano, Haemophilus influenzae tipo B e hepatite B, além da poliomielite. Isso simplifica os cronogramas de imunização e fortalece a proteção precoce das crianças, especialmente em regiões com recursos de saúde limitados. Em julho, Senegal e Mauritânia se tornaram os primeiros países a introduzir essa vacina com o apoio da Aliança Gavi.
Esses imunizantes inovadores estão dando aos profissionais de saúde da linha de frente melhores ferramentas para alcançar todas as crianças e interromper definitivamente a transmissão de todas as formas de pólio.
Por que você optou pela parceria da Fundação Gates com o Rotary? O que o Rotary oferece?
O Rotary foi a primeira organização a idealizar um mundo sem pólio, e a liderança dos associados tem sido essencial para impulsionar esse esforço global há mais de quatro décadas.
Como parceiro fundador da GPEI, o Rotary ajudou a vacinar quase 3 bilhões de crianças em centenas de países desde 1985. Os associados do Rotary contribuíram com inúmeras horas de trabalho voluntário e fundos significativos, e, por meio da defesa da causa, ajudaram a garantir bilhões de dólares adicionais dos governos para apoiar os esforços de erradicação. Sua rede global permite a entrega de vacinas e o engajamento comunitário nos ambientes mais difíceis, da Índia às Filipinas e à Ucrânia.
Graças à liderança do Rotary, estamos mais perto do que nunca da nossa meta de garantir que as famílias nunca mais tenham que temer essa doença.
Por que você está estendendo a equiparação de 2:1 que a Fundação Gates oferece ao Rotary?
Juntos, esperamos mobilizar até US$ 450 milhões em novos financiamentos nos próximos três anos. Esses fundos serão usados para apoiar o fornecimento de vacinas, resposta a surtos, engajamento comunitário, e implementação e manutenção de programas de erradicação da pólio nas regiões afetadas.
Essa extensão chega em um momento crítico. No ano passado, vimos o número de casos do vírus selvagem aumentar nos últimos países onde a doença é endêmica, Afeganistão e Paquistão. E a detecção da pólio em locais que já estavam livres da doença é um lembrete claro de que a poliomielite em qualquer lugar é uma ameaça para as pessoas em todos os lugares. Embora a transmissão geral permaneça baixa, nosso progresso conquistado a duras penas está em risco. A redução da ajuda global, a desinformação sobre a vacina e o aumento dos conflitos e da instabilidade política estão contribuindo para a disseminação contínua da pólio.

A continuidade da nossa parceria com o Rotary nos permitirá enfrentar esses desafios e levar vacinas que salvam vidas a crianças de todo o mundo.
É fundamental que terminemos o trabalho contra a pólio. A erradicação é a única maneira de garantir que os desafios contínuos não representem um risco constante para as crianças de hoje e das próximas gerações.
Em 2009, seu pai, Bill Gates Sr., sugeriu aos rotarianos de Seattle que trabalhassem na erradicação da malária. Com o passar dos anos, esse trabalho se transformou no Desafio Rotary de Comunidades Saudáveis, que a Fundação Gates apoia com uma doação de US$ 13 milhões, além de assistência técnica e orientação. Como esse projeto se encaixa na sua estratégia geral para a erradicação da malária e a prevenção de mortes infantis?
Nossa parceria de longa data com os rotarianos tem sido fundamental para o progresso que vimos contra a malária nas últimas décadas, e hoje é mais importante do que nunca, em face das mudanças de pauta e do financiamento incerto que estão colocando esse progresso em risco.
Nos últimos 25 anos, 2,2 bilhões de casos de malária e 12,7 milhões de mortes foram evitados, graças a inovação, ajuda generosa e compromisso político. Pela primeira vez, a erradicação está ao nosso alcance, e o fluxo de ferramentas de última geração para transformar essa visão em realidade nunca foi tão forte.
O trabalho do Rotary é essencial para a formação de redes de agentes comunitários de saúde que levarão essas ferramentas às pessoas que precisam. Por meio do Desafio Rotary de Comunidades Saudáveis, o Rotary está ajudando a treinar milhares de agentes comunitários de saúde na República Democrática do Congo, Moçambique, Nigéria e Zâmbia, que estão tratando malária, pneumonia e diarreia em suas próprias comunidades. Esses agentes conhecem suas comunidades como ninguém. São eles que nos levarão a cruzar a linha de chegada no combate à malária nos lugares mais difíceis e, no processo, construirão a base para comunidades mais saudáveis e resilientes, capazes de enfrentar vários desafios de saúde.
Como a IA afetará o desenvolvimento? Dê um panorama de como serão os serviços de saúde, agricultura, educação etc. daqui a 20 anos.
A inteligência artificial tem o potencial de ajudar a resolver alguns dos desafios mais difíceis do mundo. Uma das principais maneiras pelas quais a IA está ajudando a moldar o futuro é fornecendo suporte essencial aos trabalhadores da linha de frente – incluindo agentes comunitários de saúde, agricultores e professores – para que alcancem as pessoas de forma mais eficiente e eficaz.
Na saúde global, as ferramentas com tecnologia de IA poderiam reduzir significativamente a pressão sobre os sistemas de saúde sobrecarregados, apoiando os profissionais da linha de frente no diagnóstico de problemas de saúde e na prestação de um atendimento melhor e mais eficaz. Imagine uma enfermeira em uma clínica rural usando uma ferramenta de IA para analisar os sintomas de um paciente, sinalizar casos de alto risco e fornecer diagnósticos precisos e sugestões de tratamento. Esse tipo de suporte clínico em tempo real poderia melhorar a precisão e o acesso, preenchendo lacunas de longa data no atendimento e levando recursos que salvam vidas àqueles que mais precisam.
E isso é apenas o começo. Na agricultura, a IA está fornecendo consultoria personalizada a pequenos agricultores para aumentarem sua produção agrícola. Nas salas de aula, as ferramentas baseadas em IA estão ajudando os professores a personalizar as aulas para os alunos e melhorar os resultados de aprendizagem. Se o mundo continuar priorizando a equidade e o acesso, a inteligência artificial poderá ser um poderoso multiplicador de forças para o desenvolvimento, expandindo as oportunidades, reduzindo a desigualdade e melhorando milhões de vidas.
O Rotary tem enfatizado cada vez mais o impacto mensurável em seus projetos. Como alguém que há muito tempo se concentra na coleta de dados, você poderia dar algum conselho aos nossos associados?
Dados de qualidade e em tempo hábil são essenciais para tudo, desde o desenvolvimento de ferramentas apoiadas por IA até o fornecimento de vacinas e sensibilização. Com os avanços na forma como os pesquisadores coletam e analisam os dados de saúde global, agora sabemos muito mais sobre o que mata as crianças, onde essas mortes ocorrem e por que algumas crianças são mais vulneráveis do que as outras. Ao colocar essas percepções em prática, conseguimos um progresso incrível nos últimos 25 anos, reduzindo a mortalidade infantil e salvando vidas. Com o passar do tempo, dados de melhor qualidade revolucionaram a forma pela qual entendemos os desafios da saúde, direcionamos recursos e medimos nosso impacto – e eles continuam sendo uma das ferramentas mais poderosas para impulsionarmos o progresso futuro.
Investir em dados é uma maneira inteligente e econômica de criar impacto. Continuar melhorando a coleta de dados, com investimento em informações de qualidade, nos dará uma visão mais completa de onde nossos investimentos e programas terão o maior impacto, além de nos ajudar a criar soluções para alguns dos desafios de saúde mais difíceis do mundo. Elaborar programas com dados de qualidade e medir seu impacto são ações que aumentarão a eficácia das iniciativas do Rotary ainda mais.
Que mensagem você tem para os associados do Rotary?
Acima de tudo, obrigado por seu apoio inabalável à erradicação da pólio. A liderança, defesa da causa e compromisso contínuo do Rotary levaram o mundo à beira da erradicação da doença, algo anteriormente considerado impossível.
Aos rotarianos de todo o mundo: obrigado por décadas de dedicação e parceria. Graças aos seus esforços, um dia viveremos em um mundo onde todas as crianças estarão a salvo dessa doença. Esperamos deixar a pólio para trás muito antes da nossa fundação fechar suas portas em 2045.
Artigo publicado na edição de outubro de 2025 da revista Rotary.
Ajude a fazer história e acabar com a pólio para sempre.
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